terça-feira, 22 de julho de 2008

O candidato

Cumprindo uma rotina tipicamente washingtoniana, fui ontem até ao Mall para a sessão semanal do Screen on the Green, ignorando os 35 graus de temperatura e os impiedosos esquadrões de mosquitos que sempre atacam ao lusco-fusco. Tinha cobertor para o relvado, merenda de sobra para todos os amigos, repelente para os bichos (não adiantou nada) e, principalmente, grande expectativa quanto à reacção popular ao cartaz da noite -- "The Candidate", um filme de 1972 sobre a campanha eleitoral de um concorrente ao Senado pelo estado da Califórnia. Tirando as picadas, o programa foi um sucesso.
Robert Redford, ainda na sua época de galã, interpreta Bill McKay, um advogado de causas liberais, cujo sucesso e juventude não passa desapercebido aos operacionais do Partido Democrata, desesperados por um novo rosto que os relance na cena política californiana. McKay aceita entrar nessa arena mediante as suas próprias regras: dizer o que quiser, dirigir a sua campanha. O partido aceita, até porque a corrida está perdida. As coisas mudam, porém, depois da vitória das primárias. A máquina apura-se e a "novidade" e "idealismo" do candidato são, primeiro para evitar uma humilhação eleitoral, depois para vencer o opositor republicano, um político veterano e habituado aos meandros de Washington, Crocker Jarmon.
Só um eremita não via neste enredo uma óbvia relação com a actual disputa Obama/McCain e a verdade é que em vários momentos era difícil distinguir a ficção e a realidade. Depois de meio ano de campanha, estamos todos "hipnotizados" pelas eleições, e eu e os meus três amigos repórteres imediatamente trocamos olhares quando no filme o candidato republicano se referiu à sua plateia chamando-os "my friends" ou elogiou os "grandes generais americanos", tal como John McCain; quando o democrata falou na necessidade de incluir a raça e a pobreza na discussão eleitoral, num momento verdadeiramente "obâmico", ou ainda quando os operacionais das duas campanhas se degladiavam para distribuir propaganda e aliciar eleitores -- "Quem é que não vai fazer reportagem sobre os voluntários em Novembro?", perguntamo-nos com cinismo.
O mais curioso, porém, foi perceber como o discurso político se depurou de tal maneira, que é capaz de se repetir num perpétuo contínuo -- redondo e cifrado, sem dúvida, mas sem perder actualidade nem sentido através das décadas. O apelo e atracção do discurso e da personalidade de McKay nos longínquos anos 70 não é diferente daquela que hoje exacerba Barack Obama e projecta o seu estatuto de fenómeno político. As palmas e vivas dos espectadores deitados na relva às inúmeras referências da agenda liberal americana seguramente não eram de deslumbramento pela qualidade do diálogo ou desempenho dramático do elenco -- mas uma confirmação da validade teórica e política dessas mesmas propostas, hoje repetidas por um novo actor e num novo contexto.
O belíssimo texto do filme foi escrito por Jeremy Larner, que trabalhou como speechwriter do senador Eugene McCarthy durante a sua campanha pela nomeação democrata em 1968. O argumento captura todas as vicissitudes e estados de alma de uma campanha, e de forma particularmente brilhante, na última deixa: "What do we do now?", pergunta Bill McKay, num relâmpago de lucidez, antes de se perder na multidão e fechar definitivamente a porta de um quarto de hotel vazio de vida.


p.s. Há noites em que Washington parece mesmo um lugar à parte no mundo. Não sei de nenhum outro onde milhares de pessoas enchessem por completo um parque longe de tudo para assistir a um filme com mais de 30 anos sobre uma eleição.

Sem comentários: